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Estigma que dói: com HIV, ela conta que colega queria separar talheres

Neste 1º de dezembro é celebrado o Dia Mundial de Combate à Aids, e continua sendo importante trazer informações claras sobre a infecção

Susto, desespero, medo, raiva, ódio, revolta, frustação e nenhuma aceitação. É desta forma que Lucrécia Borges Barbosa, 30, professora de Wanderlândia, no Tocantins, descreve a reação que teve no segundo semestre de 2014 quando recebeu o diagnóstico de HIV. Ela recorda também de situações constrangedoras pelas quais passou. Atualmente, a professora ministra palestras pela Pastoral da Aids o Tocantins.

Lili Nascimento, 32, terapeuta, escritora e pesquisadora, nasceu na zona sul da capital paulista, mora em Natal, e foi infectada pelo HIV (vírus da imunodeficiência adquirida) na chamada transmissão vertical, de mãe para filho. Sua família sempre fez questão de oferecer todas as informações possíveis para instrumentá-la diante das situações de violência, mas situações de preconceito aconteceram. Em uma aula de educação física, ela caiu, ralou o joelho e a escola não sabia como reagir a isso: “A situação me traumatizou muito porque me senti uma arma química, uma bomba-relógio.”

Guilherme Silva Lima, 29, psicólogo que vive na capital fluminense, destaca a importância da rede de apoio. Ele fez um vídeo para dar a notícia de que havia sido infectado pelo vírus. A princípio, teve receio, mas se surpreendeu com o retorno que recebeu. Agora, ele atende pessoas que foram infectadas pelo HIV.

Essas três histórias mostram como ainda existe preconceito em relação ao vírus. Neste 1º de dezembro é celebrado o Dia Mundial de Combate à Aids, e continua sendo importante trazer informações claras sobre a infecção.

‘Colega queria separar copos e talheres’

Lucrécia recorda episódios de preconceito: “Hoje, estou com o vírus indetectável e intransmissível no organismo, mas sofri bastante no começo. Tive neurotoxoplasmose —infecção do sistema nervoso central. Fiquei sem andar e sem falar. A alimentação era feita por sonda. Cheguei a usar fraldas, foi uma época terrível.

Logo após o diagnóstico, tive acesso às orientações e fui bem acolhida pela equipe médica. Não demorou para que começasse a medicação. Porém, ainda no início, tive alergia a um dos medicamentos e fiquei internada alguns dias. Além disso, tive depressão.

“Sofri discriminação por parte de um colega que queria separar os copos e talheres e, também, alguns ‘ficantes’ para os quais contei e não quiseram continuar”.

Faltam informações corretas sobre o tema, existe o estigma que foi construído sobre o HIV, Aids e as ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), e a ausência de aceitação própria.

Na minha opinião, todas as esferas públicas devem agir no combate à discriminação, para o uso de preservativos e educação sexual.

Que as pessoas que estão em dúvida façam o teste, que as já diagnosticadas não abandonem o tratamento e que mais profissionais tenham uma atuação ética e humanizada, com sigilo, respeito e sem discriminação.”

Como lidar com rejeição e estereótipos

Para conviver bem com o diagnóstico, na opinião de Nara Siqueira Damaceno, psicóloga hospitalar do HDT-UFT (Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins), ligado à rede Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), especialista em atenção clínica em infectologia e mestranda em ciências da saúde, é crucial que o paciente seja capaz de exercer, de fato, a sua vida para além de sua soropositividade.

“É muito comum que, após a descoberta da soropositividade, o paciente analise suas concepções e é importante que, ao fim desse processo, haja uma reinvenção sobre quem ele é, uma vez que muitas mudanças atravessarão sua vida”, Nara Siqueira Damaceno, psicóloga hospitalar.

Conviver com o sigilo traz um impacto grande na vida das pessoas que vivem com HIV. Afinal, o enfrentamento das questões sociais trazidas pelo preconceito desperta o medo da discriminação, tanto dentro da família como no trabalho e demais círculos sociais, além de prejudicar a adesão ao tratamento, aumento do isolamento e sentimento de solidão e inadequação.

Segundo a psicóloga, o benefício da revelação do diagnóstico é similar aos observados em outras patologias, como sentir-se apoiado e aceito, receber motivação, e dividir os temores e sucessos. “Contudo, não é a pura revelação diagnóstica que traz ganhos, mas o fato de se escolher alguém em específico que transmita confiança e com capacidade de respeitar o sigilo”, diz Damaceno.

Acolhimento inicial foi determinante’

Guilherme conta como recebeu a notícia de ter HIV: “Em fevereiro de 2017, um rapaz com o qual havia me relacionado entrou em contato porque havia feito exame de sífilis e havia dado reagente. Assim, no dia seguinte fui à clínica da família para realizar o mesmo teste. O resultado foi negativo para sífilis e positivou para HIV. Foi uma surpresa muito grande e desesperadora.

Para minha sorte, contei com o apoio da enfermeira que fez o teste: ela foi uma excelente profissional. O bom acolhimento inicial foi determinante. Ela me passou o contato pessoal para o que eu precisasse, foi bastante presente e me acompanhou até iniciar o tratamento.

“Digo que tive sorte porque, em geral, embora existam muitos bons profissionais da saúde, há os que não sabem fazer esse acolhimento. Passei por alguns médicos para os quais tive que dar informações em relação ao HIV”.

Teve um que trouxe uma ideia de que os remédios eram apenas paliativos e que, inevitavelmente, eu desenvolveria a Aids. Isso não existe. O público principal que atendo na clínica são pessoas que têm HIV e não é incomum aparecerem pacientes que relatam casos como o de um que foi retirar o medicamento e o enfermeiro comentou: ‘Não se cuidou, né?’ É frequente ainda falas como ‘que pena’.

Tudo isso é a reprodução de um estigma. Por isso as pessoas enfrentam muita dificuldade, em especial, para contar. Até abrir minha sorologia, precisei elaborar muito, pensar no que poderia acontecer depois, em relação a sofrer consequências relacionadas à discriminação. A terapia muito me ajudou nessa etapa. Percebi que à medida que falava, me sentia melhor. Até que, finalmente, decidi fazer isso.

Em 2018, fiz o vídeo e foi a primeira vez que contei para todo mundo. E, mais uma vez, para minha sorte, não sofri nenhum tipo de preconceito. As pessoas me acolheram e foi uma surpresa porque apesar da coragem, tive medo.

Ter uma rede de apoio é fundamental. Dentro dessa rede, é aconselhável ter também a ajuda profissional, como um psicólogo, capacitado para cuidar da saúde mental. A minha carga viral está indetectável desde 2017.

Em relação aos relacionamentos amorosos, antes de publicar o vídeo, criei diferentes estratégias para relatar. Era uma questão importante e foi um dos fatores que fizeram com que abrisse minha sorologia porque é muito chato ter sempre que revelar ao se envolver com alguém. É desgastante, afinal, sempre há o risco de rejeição e de ser discriminado.”

O papel dos profissionais da saúde

Segundo a psicóloga do HDT-UFT, estudos comprovam o papel fundamental da relação positiva entre paciente-equipe para maiores chances de adesão ao tratamento.

Atuar no contexto da infectologia demanda empatia e visão crítica sobre o fator social e emocional. Muitas vezes, a pessoa não encontra apoio na família e entre amigos. Afinal, viver com HIV não é só uma condição biológica, mas também social, e é vital ter refúgio, algum local seguro para a existência humana.

A atuação dos profissionais não pode ser desligada da comunidade em que o paciente está inserido, às políticas públicas e aos direitos, assim como aceitar a realidade de cada paciente, buscando a melhor estratégia de maneira individual.

‘É por receio de discriminação que pessoas se isolam’

Lili é ativista da causa e conta o que aprendeu: “Por ter nascido com HIV, indiretamente sempre estive envolvida no assunto e em movimentos sociais. Ainda muito jovem, comecei a participar de congressos e a ter acesso às pesquisas, seja de atualização de medicação ou comportamento.

É por receio de passar por situações de discriminação que as pessoas deixam de procurar ajuda, abandonam, não buscam remédio, não revelam o seu diagnóstico às pessoas que sentem confiança. Se isolam e adoecem, inclusive mentalmente.

Já tive muitos altos e baixos na minha saúde. Quando tinha por volta de 20 anos, comecei a pesquisar outras possibilidades de tratamento que não fossem apenas medicamentosos. Algumas deram muito certo e outras, muito errado. Mas não existe nada que substitua o convencional.

Minhas questões de saúde estão muito relacionadas ao longo período de vivência com HIV. E isso é um dos problemas atuais na epidemia de Aids: a ausência de estudos que discutam o envelhecimento com o vírus, a cronicidade e o uso prolongado dos antirretrovirais que causam enfraquecimento dos ossos, sobrecarga dos rins, alguns podem causar perda auditiva e perda de visão, consequências do uso prolongado.

De um modo geral, as principais dificuldades são o estigma e a discriminação. Embora estejamos em um momento histórico importante, que é de avanço das pesquisas de vacina e das de cura, a Aids é uma epidemia social, com a prevalência da desigualdade e vulnerabilidade entre os negros, em relação ao gênero e, também, entre crianças e adolescentes.

Há uma diminuição muito significativa dos dados de óbito em população branca e aumento de quase 30% dos dados de óbito na população preta. Existe ainda uma fragilidade das formações em saúde em que falta preparo para lidar com as especificidades de uma epidemia social.”

Manutenção do tratamento: é preciso estar vigilante

“Na experiência prática e na literatura é comum encontrar que as reações adversas são dificultadores da adesão e que os adoecimentos em decorrência da imunodeficiência são preditores para a aderência ao tratamento”, afirma Damaceno.

Dessa maneira, ambos os fatores necessitam estar sob constante monitoramento do psicólogo, pois podem ser usados como ferramentas em benefício do paciente, uma vez que propicia o esclarecimento de dúvidas, a exposição das angústias, o melhor encaixe do tratamento na individualidade do paciente ou, até mesmo, a mediação entre a rede de apoio ou a rede de atenção à saúde.

Além disso, o número de pessoas que envelhecem vivendo com HIV é muito maior do que em décadas anteriores e isto se dá em razão da melhora do tratamento e da maior vivacidade e exercício da sexualidade.

Com a idade, a imunidade e as funções do corpo podem se fragilizar e com isso ocorrer falhas em relação ao tratamento. Os efeitos degenerativos do HIV impactam o sistema imunológico e neurológico, acelerando o envelhecimento.

Fonte: VivaBem UOL

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