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Governo ignora orçamento, extingue benefício e auxílio creche fica no papel

O prometido pagamento direto a creches particulares para que recebessem crianças de até quatro anos de famílias beneficiárias do Auxílio Brasil não saiu do papel e dificilmente sairá —pelo menos neste ano.

O benefício Auxílio Criança Cidadã —ou auxílio-creche, como foi inicialmente batizado — foi previsto na MP (Medida Provisória) que criou o Auxílio Brasil, publicada em agosto de 2021; e virou lei em dezembro do ano passado, após aprovação pelo Congresso.

O pagamento de creches fazia parte do conjunto de ações previstas no escopo do Auxílio Brasil, que substituiu de uma vez vários programas sociais federais. No caso, o Auxílio Criança Cidadã substituiu o programa Brasil Carinhoso, que incentivava prefeituras a matricular crianças do Bolsa Família em creches.

Para 2022, o governo federal reservou R$ 137 milhões no orçamento para custear esse novo auxílio. Entretanto, nenhum centavo foi gasto nem sequer empenhado. A consequência: não há crianças atendidas pelo programa.

Apesar de prevista em lei que criou o Auxílio Brasil, a normatização do Auxílio Criança Cidadã foi revogada em 20 de março por um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

A publicação no Diário Oficial da União suprimiu os 14 artigos do decreto anterior, de novembro de 2021, que regulamentava o Auxílio Brasil, revogando todas as citações ao Auxílio Criança Cidadã.

“A revogação implica na extinção da norma ligada, nesse caso, ao Auxílio Criança Cidadã. Desta forma, a falta de regulamentação impossibilita que passemos para a fase de inclusão de beneficiários e/ou habilitação de instituições”, informou o Ministério da Cidadania em resposta dada a um questionamento pela LAI (Lei de Acesso à Informação).

Ideia do programa era pagar creches diretamente

O Auxílio Criança Cidadã era um benefício previsto às famílias que recebem o Auxílio Brasil. No papel, ele deveria ter cadastrado creches particulares para atender essas crianças. O dinheiro seria pago diretamente pelo governo federal ao centro educacional.

O benefício era destinado às crianças de até quatro anos de famílias que moram e trabalham em locais distantes de creches públicas —ou que vivam perto, mas não consigam vagas.

Ainda de acordo com o que prevê a lei, um edital de chamamento público para credenciamento dos estabelecimentos já deveria ter sido publicado para que creches interessadas pudessem ser cadastradas. Porém, não houve qualquer publicação.

Outra previsão era que um ato conjunto dos ministérios da Cidadania e da Educação definisse o valor do auxílio, os critérios para o atendimento aos beneficiários e os procedimentos para acompanhamento, monitoramento, fiscalização e controle dos valores repassados.

A coluna perguntou aos ministérios da Cidadania e da Educação se haveria planos para publicar algum edital de chamamento ou investimento emergencial para garantir essas creches, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. Ela será incluída se os órgãos se manifestarem.

Além de não pagar por vagas, o governo Bolsonaro reduziu os investimentos para construção de creches e pré-escolas pelo país.

Segundo reportagem da Folha, o MEC (Ministério da Educação) terminou 2021 com R$ 101 milhões pagos para obras de creches em prefeituras, 80% menos em relação a 2018 —último ano do governo Michel Temer (MDB), quando esse investimento em valores atuais foi de R$ 495 milhões.

Fora isso, em abril, 2.400 obras de creches estavam paradas ou atrasadas pelo país, segundo levantamento da ONG Transparência Brasil; 75% delas no Norte e Nordeste.

Sem creche, sem trabalho

Sem acesso à creche pública perto de sua casa, no bairro do Benedito Bentes, em Maceió, Jéssica Fernandes, 27, vive para cuidar dos quatro filhos —um deles de um ano e cinco meses, ou seja, em idade de creche.

“Já tive muitos problemas para deixar ele com alguém e tentar arrumar um emprego. Aqui não tem com quem deixar”, diz.

Solteira e sem poder trabalhar, ela vive hoje exclusivamente dos R$ 600 do Auxílio Brasil para sustentar a casa. “Nem o Auxílio Gás estou recebendo. O valor que pagam é muito baixo para cinco pessoas viverem. Não fosse a ajuda dos outros, estaríamos passando fome”, conta.

Vitória Raissa Ferreira dos Santos, 23, é mãe de Laura, de 3 anos, e enfrenta a mesma dificuldade.

“Já deixei de deixar de trabalhar por não ter com quem ela ficar. Cheguei a trabalhar na [orla da] Pajuçara aos domingos, mas saí porque precisava cuidar dela”, Vitória Raissa Ferreira dos Santos.

A falta de creche quase se tornou um empecilho até para ela estudar e concluir o ensino médio. “Fazia EJA [educação de jovens e adultos] à noite no ano passado e já não tinha com quem deixar, precisava levar Laura”, lembra.

Ela morava na cidade de Paranaguá, no Paraná, com o pai da criança, mas acabou se separando em 2020, após cinco anos de casamento, e voltou com a filha para viver em Maceió.

Hoje, também tem apenas a verba do Auxílio Brasil como renda. “Mas esses R$ 600 não dão para muita coisa. Pago aluguel, água, luz. Tudo é caro e difícil”, afirma.

Direito a creche é garantido

A doutora em educação e gerente de Conhecimento Aplicado na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Beatriz Abuchaim, lembra que o acesso às creches é um direito constitucional, não só das crianças como das famílias. “Ela deve ser ofertada de forma gratuita”, diz.

No Brasil, ressalta que a maioria das crianças não frequenta creches, muitas vezes por falta de vagas. “Só 36% do público de zero a quatro anos está acessando creche. O que mais nos preocupa é que são as crianças mais vulneráveis que ficam de fora”, afirma.

“Isso é um problema porque retroalimenta o ciclo de pobreza. Essa família não tem acesso à creche para poder trabalhar. Sem contar que o filho poderia estar num ambiente com cuidados, estímulos e alimentação nutricional de qualidade.”

Para ela, o Auxílio Criança Cidadã tem lacunas que nunca foram explicadas. “Como seria a operacionalização desse processo? Essas escolas teriam que atender a critérios de qualidade? Como seria a fiscalização dos centros educacionais? Como chegariam esses recursos às escolas? Como as crianças seriam localizadas? São muitas interrogações”, pondera.

“O melhor modelo que entendemos para as creches no país é aumentar o financiamento para expansão da rede pública e conveniados sem fins lucrativos. Isso permite melhores critérios técnicos e uma fiscalização mais próxima das secretarias”, Beatriz Abuchaim, doutora em educação.

Antes dele, havia o Brasil Carinhoso

Quando existia o Brasil Carinhoso, extinto em 2020, o governo fazia uma transferência automática de recursos aos municípios para custear despesas de crianças de 0 a 48 meses de famílias beneficiárias do Bolsa Família e que estivessem matriculadas em creches públicas ou conveniadas com o poder público.

“O desenho do programa incentivava as prefeituras a ampliar as vagas em creches para as crianças mais pobres ao repassar 50% a mais do valor do Fundeb”, lembra Janine Mello, especialista em políticas públicas e gestão governamental e que foi diretora de Gestão e Acompanhamento do Plano Brasil sem Miséria de 2011 a 2015.

“Em 2011, antes do lançamento do programa, cerca de 483 mil crianças do Bolsa Família entre 0 e 48 meses estavam matriculadas em creches. Em 2015, esse número saltou para 765 mil”, afirma.

Para ela, além de não ter saído do papel, o desenho do Auxílio Criança Cidadã possui dois grandes problemas.

“O primeiro é que, sem a participação das prefeituras e com o dinheiro indo direto para creches privadas, é mais difícil controlar a qualidade do serviço que será prestado a essas crianças”, diz.

“O segundo e mais cruel é o fato de o auxílio ser condicionado à mulher estar empregada formalmente. O perfil laboral das mulheres mais pobres mostra que muitas estão na informalidade e não têm com quem deixar seus filhos”, Janine Mello, especialista em políticas públicas e gestão governamental.

Fonte: Coluna Carlos Madeiro/UOL

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