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Medical gaslighting: não é só você que se sente invisível para os médicos

Medical gaslighting ocorre quando queixa é minimizada - iStock
Medical gaslighting ocorre quando queixa é minimizada – Imagem: iStock

Você já ouviu falar na expressão “medical gaslighting”? O termo parece estranho, mas a situação é familiar: medical gaslighting é a experiência de se sentir “invisível” diante de um médico.

Em outras palavras: é procurar ajuda médica por causa de algum sintoma e ter a queixa minimizada, descartada ou atribuída a fatores psicológicos, sem que seja feita qualquer investigação clínica.

A bancária Karen Ferrari, 31, passou por algo desse tipo. Ela conta que, em setembro de 2019, estava sentindo dores abdominais e foi três vezes na mesma semana ao pronto-socorro de um hospital público em Arujá, na Grande São Paulo, sem que fosse feita uma investigação cuidadosa do problema.

Karen suspeitava que pudesse estar com apendicite (inflamação do apêndice). Os médicos fizeram algumas perguntas, examinaram a região da barriga, receitaram remédio para dor e a mandaram de volta para casa. Ela não chegou a fazer exames mais aprofundados.

“No quarto dia [de dor], eu já não estava mais aguentando. Cheguei ao pronto-socorro à noite, minha barriga estava enorme, parecia que eu estava grávida de uns quatro meses.”. Karen lembra que um médico chegou a apertar sua barriga e disse: “não é apêndice”.

Karen pediu que fosse feita uma ultrassonografia, mas o médico afirmou que não poderia pedir o exame no pronto-socorro.

“Ele falou assim ‘Você não está com apendicite. Pode ir embora’. Me deu um Buscopan [remédio que serve apenas para aliviar o sintoma], de novo, na veia. Quando cheguei em casa, já não estava aguentando de dor.”

Sem investigação cuidadosa

A expressão “medical gaslighting” é relativamente recente, embora defina uma prática antiga. “Medical gaslighting consiste em atribuir, sem realizar a devida investigação clínica, determinadas queixas apresentadas pelos pacientes a fatores estritamente psíquicos”, explica Hugo Castro, médico perito especialista em erro médico.

“O profissional médico minimiza a importância das queixas apresentadas pelo doente e, em alguns casos, deixa de diagnosticar doenças ou complicações potencialmente graves”, completa.

Ele acrescenta que o medical gaslighting acontece quando o profissional deixa de lado um dos princípios básicos da ciência médica, que é o diagnóstico diferencial.

Castro dá um exemplo: “uma pessoa chega ao meu consultório e diz que está sentindo febre, tosse e coriza. A minha principal hipótese diagnóstica, depois de examinar o paciente, é de uma gripe, mas existem diagnósticos diferenciais, que são aquelas doenças que se apresentam de forma semelhante. Pode ser uma sinusite, um caso de covid-19 ou um simples caso de rinite alérgica.”

Para o especialista, medical gaslighting pode ser considerado uma forma de negligência médica. “A negligência na prática médica é caracterizada quando o médico deixa de cumprir ou de seguir um cuidado obrigatório para aquele tipo de circunstância. Todo paciente com dor, por exemplo, deve ser devidamente e exaustivamente investigado até que se encontre a etiologia [causa] daquela dor.”

Mulheres são mais afetadas

O descrédito das queixas e avaliações precipitadas sobre o paciente também podem ocorrer em casos de saúde mental. Anos atrás, a psicóloga Mônica Holanda, 49, estava com depressão e marcou uma consulta com uma clínica geral para pedir um atestado médico para entregar no trabalho.

“Ela disse que não ia dar [o atestado] porque uma pessoa com depressão não usa colar nem batom. Fui embora arrasada”, lembra.

Estudos internacionais indicam que as mulheres, e em especial as mulheres negras, são afetadas com mais frequência por medical gaslighting.

Reportagem publicada no jornal norte-americano “The New York Times” em março cita pesquisa feita pela socióloga Karen Lutfey Spencer, que estuda a tomada de decisões médicas na Universidade do Colorado, nos EUA.

“Sabemos que as mulheres e especialmente as mulheres negras são frequentemente diagnosticadas e tratadas de maneira diferente pelos médicos do que os homens, mesmo quando têm as mesmas condições de saúde”, disse Spencer.

Essa pesquisa sugere que as mulheres são duas vezes mais propensas que os homens a serem diagnosticadas com alguma doença mental quando os sintomas relatados por elas têm relação com doenças cardíacas.

Sinais de medical gaslighting

Uma reportagem publicada sobre esse tema em julho deste ano, também no “The New York Times”, trouxe uma lista de sinais de alerta de medical gaslighting que podem ser observados quando o paciente procura atendimento médico:

  • O médico interrompe o paciente com frequência;
  • O médico não permite que o paciente explique o que está sentindo;
  • O médico não parece ouvir o paciente;
  • O médico minimiza os sintomas do paciente, questionando, por exemplo, se ele sente dor;
  • O médico se recusa a conversar sobre os sintomas relatados pelo paciente;
  • O médico não solicita exames de imagem ou de laboratório para descartar ou confirmar um diagnóstico;
  • O paciente sente que o médico está sendo rude, condescendente ou depreciativo;
  • Os sintomas relatados pelo paciente são atribuídos a alguma doença mental, embora não receba nenhum tipo de encaminhamento para tratamento psicológico ou psiquiátrico.

Fui vítima de medical gaslighting; o que faço?

Caso o paciente sinta que foi vítima de medical gaslighting, deve procurar outro profissional para ouvir uma segunda opinião. Foi o que a Karen Ferrari fez. Depois de ter ido três vezes seguidas ao mesmo hospital, ela decidiu buscar ajuda em uma unidade de saúde privada na capital paulista.

Lá, foi atendida por um clínico geral, fez exame de sangue, foi encaminhada para um ginecologista, fez uma tomografia, voltou a ser atendida por um clínico e acabou sendo internada.

Um cirurgião finalmente informou que ela estava com apendicite severa e teria de ser operada imediatamente. “Tive de fazer uma cirurgia de urgência. Minha recuperação foi muito ruim. A média de tempo de internação para essa cirurgia é de um a dois dias. Eu fiquei sete dias internada.”

Castro também recomenda que o paciente pesquise sobre o que está sentindo. “Hoje é muito comum o paciente chegar ao consultório mais instruído do que há alguns anos. Geralmente, esse paciente já pesquisou esse sintoma na internet e isso, em certa medida, facilita a prática do profissional. Um paciente informado é um paciente melhor de se tratar.”

Em casos de emergência, quando não há tempo para pedir uma segunda opinião ou para fazer pesquisa na internet, uma possibilidade é questionar o médico ou pedir ajuda à pessoa que está acompanhando o paciente para que faça isso.

“Vale a pena perguntar: ‘Doutor, antes de dizer isso, o senhor já pesquisou tudo o que poderia ser?’ Questionar o médico. A informação é sempre uma aliada do paciente.”

‘Não voltei mais lá’

A aposentada Emília Gonçalves, 74, conta que passou por experiências de medical gaslighting “muitas vezes”. Uma de que ela se lembra com clareza aconteceu em 2019 quando Emília morava em Campinas, no interior de São Paulo.

Na época, ela sentia dores na coluna e no quadril e, por causa disso, agendou uma consulta médica com um ortopedista. “Consulta superficial, sem interesse, sem encarar, só cumprindo tabela. Vi de cara que ele não queria perder muito tempo comigo. Ele quase não me perguntou nada”, lembra.

Emília voltou a encontrar o médico em uma segunda consulta, quando levou o resultado dos exames. “Ele me disse muito rapidamente ‘cirurgia’ e deixou claro que não tinha outro jeito.”

Emília ficou desanimada tanto com a recomendação médica quanto com a forma como foi tratada nas duas consultas. E tomou uma decisão: “Não voltei mais lá”. A dor na coluna que ela sentia acabou desaparecendo sem intervenção cirúrgica.

Fonte: VivaBem/UOL

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