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O sistema de saúde cuida das mulheres negras?

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Dois aprendizados carrego comigo desde a residência médica. O primeiro é que se um paciente retorna duas, três, quatro vezes ao seu consultório sem ter experimentado melhora significativa em consequência das suas intervenções como médico, é preciso voltar ao começo e checar ponto a ponto toda a história do seu adoecimento. Se há dor e você supõe uma causa para ela, trata e ela segue presente, volte, refaça todo o percurso. Investigue, reexamine, escute atentamente cada detalhe que seu paciente confiar a você.

O segundo aprendizado é que, quando se é uma mulher negra, as chances de ser deslegitimada e invalidada ao compartilhar suas dores dentro de um consultório aumentam muito.

Elis, 38 anos, já havia estado em dezenas de consultas nos últimos 3 anos, tempo em que os sintomas que a motivaram a me procurar começaram a aparecer. Entrou no consultório com um desejo imenso de ser simplesmente ouvida.

“Vim indicada pela Soraia, sua paciente. Ela é muito minha amiga.”

E daí em diante, Elis não mais conseguiu parar de chorar.

“Tenho me sentido mal e sequer consigo convencer os médicos de que de fato estou sentindo tudo que digo sentir. Eles me tratam como se tudo fosse coisa da minha cabeça. Disseram que os sintomas são psiquiátricos porque tem pouco tempo que eu me separei do meu marido. Doutora, eu estou pouco me lixando para o meu marido. Quero que ele desapareça! Me abandonou nesse estado. Eu sequer sei o que são essas coisas que eu sinto e esse homem já foi embora. Que vá pro inferno com a arrogância dele.”

A lista de sintomas era longa, mas (atenção!) ela nunca tinha tido a oportunidade de contá-los, um a um, para um médico só.

A visão vinha se deteriorando e os óculos já refeitos duas vezes nos últimos 3 anos não ajudavam muito. Nem para ler, nem para assistir TV. Queixava-se também de uma fraqueza nas pernas e nos braços e de um cansaço incapacitante:

“Na verdade, eu já acordo cansada, doutora. Já aconteceu de eu passar dias tendo de tomar banho sentada em uma cadeira porque simplesmente não conseguia me manter em pé. Como que isso pode ser coisa da minha cabeça?”

A memória havia se deteriorado a ponto de ela decidir abandonar o trabalho como advogada. Não conseguia mais reter informações como antes e chegou a buscar um médico com receio de que aquilo fosse um quadro demencial.

“Fadiga, piora da visão, memória ruim, fraqueza nas pernas. Você se lembra de mais alguma coisa?” Perguntei enquanto anotava tudo no prontuário.

“Acho que estes são os sintomas mais importantes. O que mais me dói é falar deles e não ser escutada. Não aguento mais ser tratada como histérica.”

“Se você me permite, eu quero te perguntar sobre algumas outras questões. Tudo bem?”

E ela concordou prontamente.

Eram muitos os sintomas presentes. Irritabilidade, tristeza, dormências, formigamentos, fraqueza muscular, tonteira recorrente, dificuldade em manter o equilíbrio enquanto andava, espasmos musculares na perna e episódios de perda completa da força que a levava para a cama. Já havia parado de dirigir por estes motivos. Isso a tornava cada vez mais dependente da sua pequena rede de apoio.

Além desses sintomas, Elis descrevia um quadro de incontinência urinária – sem nenhum motivo aparente e constipação intestinal relevante – coisa que nunca havia vivenciado. Contava também de sua perda completa da libido e incapacidade de chegar ao orgasmo, o que contrastava com o seu desejo sexual de alguns anos atrás. Contou também que muitos daqueles sintomas pioravam muito quando se expunha a ambientes muito quentes ou após consumir café. Certa vez, saiu do banho “desfalecida”.

Há alguns anos tinha o artesanato como uma de suas paixões, mas decidiu abandonar esse gosto por faltar a ela coordenação motora. Por fim, disse estar perdendo alguns quilos já que não conseguia comer muito em consequência de uma dificuldade para engolir.

Se algum médico nos acompanha nesta leitura até aqui, muito provavelmente já está cansado de saber o que esta moça tem, o que ela precisa fazer e onde vai encontrar tratamento. Parece fácil. E é. Basta ouvir a história. Levantar hipóteses, perguntar, se interessar, detalhar as queixas, e o diagnóstico salta aos olhos. Mas quando se é uma mulher e especialmente quando se é negra, falar sem ser interrompida e conseguir 20 ou 30 minutos da atenção e da escuta qualificada de alguém é algo raríssimo.

Se você não é um médico deve estar pensando: “Minha nossa! Quantos problemas a Elis tem para resolver!” Mas não eram muitos os problemas de Elis. Para ser bem precisa, todas as queixas, da visão ruim à incapacidade de segurar a urina, a constipação intestinal, o desequilíbrio, a irritabilidade, os formigamentos, a fadiga e todos os outros sintomas, sem exceção, eram sintomas neurológicos.

Mesmo diante deste quadro, sugeriram que ela buscasse um especialista para resolver a questão intestinal e cirurgia ginecológica para resolver a incontinência urinária. Ela também foi encaminhada à psiquiatria e à oftalmologia. Não houve quem a enxergasse como um todo para perceber que havia uma unidade dentro das inúmeras queixas.

É preciso questionar os sistemas de saúde que permitem que algo assim aconteça. Ao redor do mundo a ciência já comprovou que a melhor porta de entrada para os sistemas públicos ou privados precisa ser a atenção primária e o trabalho da equipe multidisciplinar a qual o paciente deve se vincular.

Elis já havia buscado quatro especialistas médicos diferentes e a cada um falou de uma parte de suas queixas. Da primeira vez que pôde falar para uma médica de família, foi vista como médicos de família veem seus pacientes. Inteira.

E vejam: esta não é uma crítica aos especialistas mas a esta lógica mercantilizada de saúde que ganha dinheiro às custas do sofrimento de outras tantas pessoas. Afinal, vender 15 ou 20 consultas de 10 minutos cada uma, muitas caixas de remédio, exames desnecessários e indicar cirurgias que nada resolveriam parece mais lucrativo do que fortalecer o SUS e as equipes da Estratégia de Saúde da Família.

Vinte dias depois deste primeiro encontro, Elis voltou com os exames de sangue e a ressonância magnética que eu havia pedido. Tratava-se de um caso de Esclerose Múltipla. Um quadro de sofrimento que já durava 3 anos. Sofrimento que poderia ter sido grandemente amenizado caso Elis pudesse contar com um sistema de saúde fortalecido e que não tivesse o lucro como o seu principal norteador.

Ao receber o diagnóstico, Elis novamente chorou.

“Nunca foi preguiça, doutora. Nunca foi frescura. Nunca foi histeria como já ouvi em tantos consultórios. Ao menos agora eu tenho uma direção.”

Elis vestiu-se de coragem e foi se tratar. No SUS.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Fonte: Ecoa/UOL

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