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Reforma trabalhista de Temer abriu a trilha para exploração na serra gaúcha

O repórter Caue Fonseca, da Folha de S.Paulo, descreve a Pousada do Trabalhador como a união de três imóveis em uma das muitas ruas íngremes do bairro Borgo, em Bento Gonçalves (RS).

Era num desses “puxadinhos” de baixa luminosidade que dormiam as mais de 200 pessoas recrutadas estados do Nordeste para trabalhar em situação análoga à escravidão durante a colheita da uva na Serra Gaúcha. Eles dividiram dezenas de beliches em quartos que comportavam até dez pessoas. Sete chuveiros, localizados no subsolo, eram disputados pelas duas centenas de alojados.

Os trabalhadores deixaram o local dizendo que a comida fornecida pelos empregadores era imprópria ao consumo e que eram submetidos a agressões físicas e morais. Afirmam que eram acordados com choques elétricos e contidos com spray de pimenta. E que, endividados com os “vales” disponibilizados pelos donos da pousada para comprarem mantimentos e produtos de higiene, não conseguiam voltar para casa. A dívida era descontada, com juros, do pagamento.

Canário, apelido de um dos gerentes do alojamento ouvido pela Folha, jura que os relatos são um exagero. Ele conta que também chegou da Bahia para trabalhar no local, se estabeleceu e galgou posições na empresa. Ele agora é apontado como o segurança responsável por conter os vigiados com uma arma de choque.

Canário afirma que ele e sua equipe estavam lá apenas para controlar as brigas promovidas pelos próprios alojados. “Às vezes a coisa fica tensa. Tinha gente que roubava armário do outro. Tinha gente que dormia escondendo faca embaixo do colchão. Se a gente não é firme, a coisa sai do controle”, justificou-se à reportagem.

É difícil não se lembrar de um dos personagens do filme “7 prisioneiros” que se alia ao patrão interpretado por Rodrigo Santoro e passa a vigiar os amigos aliciados em uma fazenda junto com ele. O sonho de enriquecer na cidade grande move montanhas de trabalhadores como ele nos dramas da vida real.

Mas é outro filme, este inspirado em um clássico da literatura, que vem à mente quando Canário descreve seu trabalho.

Em “Ensaio sobre a Cegueira”, longa de Fernando Meirelles inspirado na obra de José Saramago, as vítimas de uma epidemia que afeta a visão são confinadas em alojamentos precários e passam a ter os passos vigiados.

Não demoraria para o local se transformar numa sucursal do inferno em uma disputa entre facções armadas que passam a brigar por mantimentos e controle de espaço.

“Uma coisa tinha sido fornecer alimentos para duas ou três dúzias de pessoas, mais ou menos tolerantes, mais ou menos predispostas, pelo pequeno número, a resignar-se perante ocasionais falhas ou atrasos de comida, e outra coisa era agora a repentina e complexa responsabilidade de sustentar duzentos e quarenta seres humanos de todos os jeitos, procedências e feitios em matéria de humor e temperamento”, descreve o narrador, como se falasse de Bento Gonçalves.

Na fala do segurança ouvido pela Folha, chama a atenção a aparente incapacidade de visualizar a violência que é confinar 200 pessoas em quartos de até cinco beliches e esperar alguma gratidão pelos cascudos tomados toda vez que tentavam sair de lá ou denunciar a situação. Como se o trabalhador não tivesse direito a um salário que viabilizasse ao menos os custos de uma moradia própria — mesmo que alugada.

A cegueira branca da distopia de Saramago parece acometer meio mundo ao redor.

Parte dos vizinhos que viam diariamente a movimentação de centenas de trabalhadores em sua rua não desconfiava sequer que havia ali uma espécie de pelourinho em pleno século 21. Em reportagem do jornal O Globo, queixavam-se apenas do barulho das vans e da chamada dos trabalhadores, quase todos negros, pelo nome, na rua, em plena madrugada.

“Eles [os vizinhos] não tratavam aquilo como um problema de trabalho, e sim como um problema de perturbação”, disse um gerente regional do Ministério do Trabalho e Emprego ao comentar as queixas de moradores para a polícia.

Em sua distopia, quando as vítimas da cegueira branca conseguem fugir do alojamento, Saramago compara a experiência de viver “num labirinto racional, como é, por definição, um manicômio” à aventura de andar, “sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade”.

Pois a tentativa de encobrir os indícios de um crime injustificável parece ter lançado uma fumaça branca, de tanta desinformação, sobre a capacidade de ligar os pontos entre um país fundado na escravidão e as condições de exploração atuais.

“Me espanta muito ver que ninguém, até o momento, tocou no assunto de que essa exploração trabalhista é consequência da terceirização de atividades fins, perpetrada no governo pós-golpe”, me escreveu o leitor Marcio Cezar, em referência a mudanças nas leis trabalhistas promovidas por Michel Temer em 2017. Mudanças que justamente possibilitaram a grandes empresas reduzirem custos da produção terceirizando a mão de obra que antes ficava sob sua responsabilidade.

Mais de cinco anos depois, as vinícolas de Bento Gonçalves alegam que não tinham como imaginar o que acontecia bem embaixo de suas parreiras. Crime, se houve, quem cometeu foi a empresa contratada.

A cadeia de exploração ajuda a lançar fumaça sobre culpa e responsabilidades.

Nas cerimônias da Igreja Católica, a representação do sangue de Cristo era feita por meio de vinho fabricado com sangue e suor de trabalhadores explorados na Serra Gaúcha e levou a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a se posicionar: agora deve ser levada em conta a procedência de bebidas “sobre as quais não existam dúvidas a respeito dos critérios éticos na sua produção”.

Afinal, como diz a nota da entidade, “quem ama a Deus ama também ao seu irmão”.

Em um país cegado pelo ódio, talvez seja pedir muito.

Fonte: Coluna Matheus Pichonelli/TAB UOL

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