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Advogado que sofreu abordagem racista diz que denunciou caso pelas filhas

O advogado Alexandre Marcondes, 45, é um dos poucos moradores negros do Alto da Lapa, na zona oeste de São Paulo. Em 2 de outubro, data do primeiro turno das eleições no Brasil, ele caminhava para a padaria mais próxima quando um policial militar saiu de uma viatura. Aos gritos, com uma arma apontada para a sua cabeça, foi revistado. Depois de obedecer aos comandos do PM, perguntou a razão de tal abordagem: ouviu do policial que ele estava “em atitude suspeita”, de máscara em lugar aberto.

Durante a conversa, duas mulheres brancas passaram usando máscara, ao que Alexandre perguntou se elas também seriam abordadas. Com a negativa do policial, o advogado sugeriu que sua atitude fora motivada por racismo. O policial respondeu que ele estava sendo “deselegante ao levar o assunto para esse tom”.

Nos minutos em que a ação policial durou — e foi flagrada pelas câmeras de segurança da rua —, ele lembra que teve medo de morrer e sentiu “uma tensão e um vazio” que embrulharam seu estômago. Quando a viatura se afastou do local, o advogado se sentou na calçada e chorou.

Pai de duas meninas, corintiano e sócio de um escritório de advocacia, Alexandre decidiu que não ia deixar a “deselegância” para lá. E acionou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Corregedoria da Polícia Militar.

Bairro embranquecido

No Alto da Lapa, bairro paulistano de classe média, em poucos minutos é possível ver o lugar de brancos e negros no cotidiano. Ao redor do quarteirão em que a abordagem aconteceu, é possível observar pessoas negras basicamente em atividades de serviço, trabalhando como motoristas de aplicativo, entregadores de comida ou no comércio local.

A maioria das casas possui câmeras de vigilância, muros altos e portões que deixam à mostra carros de luxo nas garagens. Seguranças de rua também são comuns.

Em 2019, a extinta SMPIR (Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial de São Paulo) divulgou um relatório classificando a subprefeitura da Lapa como a quarta da cidade com menos moradores negros: 15,4% do total.

Na vizinhança, a repercussão do caso gerou conflito entre vizinhos. No dia seguinte ao episódio, alguém jogou a imagem da ocorrência no grupo de WhatsApp do bairro, perguntando: “Alguém sabe o que aconteceu? Era bandido?”. O próprio Alexandre respondeu: “Era um homem negro indo à padaria a pedido da filha”.

Teve a solidariedade de alguns vizinhos, enquanto outros falaram em “vitimismo”, “segurança” e “policial fazendo o trabalho dele”.

Com a repercussão da ação e o empenho de Alexandre em dar visibilidade ao caso, vizinhos disseram que “não precisava de tudo isso” e que a denúncia poderia impedir que os policiais fizessem ronda na região. “Viu o que aconteceu? Depois disso, a viatura não passa mais aqui”, reclamou um morador do bairro.

Mudança de atitude

Alexandre explica que, para além do constrangimento pessoal de que foi vítima, sua intenção foi fazer com que a polícia enquanto instituição repense as atitudes — embora admita que grande parte da sociedade respalda a violência policial. “Acho muito difícil a gente achar que a polícia vai se transformar dentro de uma sociedade racista. A polícia invade a favela atirando porque aqui (aponta para os arredores) todo mundo aplaude”, diz.

O advogado cita as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro que resultaram em dezenas de mortes e nem a pandemia fez parar. “A gente continua a ver Ágatha tomando tiros nas costas [a menina de 8 anos morta com um tiro de fuzil da PM em setembro de 2019 no Complexo do Alemão, zona norte do Rio, quando voltava para casa com a mãe]. Um cara argumentou comigo que ‘a polícia colocou arma na tua cabeça, mas pelo menos eles estão passando aqui na nossa rua’. É assim que a classe média pensa.”

Mais pai que advogado

Nascido e criado no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo, Alexandre tem dois irmãos, um deles policial militar. Estudante de escola pública, diz que a vontade de ser advogado veio de filmes e séries onde a atuação dos profissionais era essencial para a solução de conflitos.

Abandonou o curso técnico em eletrônica e fez dois anos de cursinho pré-vestibular antes de entrar no curso de direito no Mackenzie. Sem dinheiro para as mensalidades, conseguiu uma bolsa de filantropia. “A mensalidade abatida pela bolsa era de R$ 263 e eu ganhava R$ 300 como office boy. O valor exato para pagar e estudar lá”, recorda. “Graças a Deus entrei. Além de me dar o ensino, também conheci a minha esposa lá [na faculdade].”

Com o fim da graduação trabalhou em escritórios menores. Depois de alguns anos conseguiu entrar em um de porte médio onde atuou na área cível para uma operadora de telefonia. Em 2011, com o dinheiro ganho nesse período, Alexandre foi morar no Canadá.

De volta ao Brasil, foi contratado por uma empresa especializada em obras públicas e começou o mestrado na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). A defesa da dissertação, em 2016, coincidiu com o nascimento de sua primeira filha, Maia, hoje com 6 anos. Três anos depois veio Alice, 3.

“Sempre tive muito medo de ser pai”, conta ele. “Nunca tive a figura paterna em casa. Então, quando elas nasceram quis me tornar um bom pai. Hoje tenho mais vontade de ser pai do que de ser advogado.”

Junto da esposa, que também atua na área jurídica, diz que hoje a família possui uma boa condição de vida. “Não posso dizer que a gente não se preocupa com os boletos, mas temos uma condição que nos permite algum conforto.” A casa na zona oeste da cidade é própria. “É um ambiente maior, onde elas podem brincar, correr. Acho que conseguimos nosso objetivo.”

Minoria no meio

O advogado diz que nunca foi uma surpresa para ele o fato de estar sozinho ou com poucos colegas negros nos espaços que frequentou.

O bairro de Anália Franco, na zona leste de São Paulo, onde ele morou na época de escola, “não tinha nada” além de terra e mato. “Numa sala de colégio estadual, com uns quarenta alunos, no máximo quatro eram negros”, conta. “Ou seja, mesmo ali eu já tinha uma condição diferenciada.”

A relativa prosperidade que adquiriu com os estudos não mudou essa percepção. “Não importa quanto dinheiro você tenha, em que posição você está, as pessoas lembram sempre de quem você é. São inúmeras as situações de racismo que já vivi.”

Dentro do meio jurídico, ele conta que pessoas já ficaram espantadas quando ele anunciou que iria se encontrar com desembargadores. Já ouviu “esse neguinho fala bem, hein?” e um juiz disse certa vez que se ele não fizesse determinado procedimento “a coisa iria ficar preta”.

Atitudes como essa, cometidas por quem julga e pune as pessoas, são, nas palavras de Alexandre, “o fruto de um judiciário branco”, que os negros não acessam por falta de oportunidades. Uma impressão que se comprova em números: um levantamento feito pelo CEERT (Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades) em 2019 apontou que profissionais negros representam cerca de 1% dos advogados dos grandes escritórios.

Homens, brancos, católicos, casados e com filhos representam 62% dos magistrados, mostrou outra pesquisa, encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018.

Orgulho da nova geração

Apesar das dificuldades e dos preconceitos, Alexandre se diz esperançoso com a onda que vê sobretudo na juventude negra de não abaixar mais a cabeça nem deixar que ataques e injustiças passem sem questionamentos.

E se lembra do público que viu numa exposição da obra do artista e ativista americano Emory Douglas, responsável pela concepção estética e publicitária do movimento Panteras Negras nos EUA, em 2017 no Sesc Pinheiros.

“A minha alegria de estar lá a despeito do que está acontecendo com o nosso país, é olhar a molecada negra jovem e como eles se sentem mais fortes do que eu me sentia”, entusiasma-se. “É a geração das minhas filhas, que não vão mais se sentir inferiores, nem deixar que riam do cabelo delas.”

Racismo estrutural

No dia 6, quatro dias após a abordagem sofrida por Alexandre, a OAB-SP, por meio de sua Comissão de Igualdade Racial, enviou ofícios ao comandante-geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Ronaldo Miguel Vieira, e ao procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Mario Luiz Sarrubbo, solicitando as providências administrativas e penais cabíveis.

Os documentos foram assinados pelo vice-presidente da OAB-SP, Leonardo Sica, e pelo presidente da Comissão da Igualdade Racial, Irapuã Santana.

Embora criminalmente o policial não possa responder, já que não houve ofensa racial e nem uma atitude contra um grupo, o representante da OAB explica que, enquanto fenômeno sociológico, houve racismo. “O crime, a meu ver, seria o abuso de autoridade, o uso indevido da força”, explica Santana.

Uma abordagem correta, afirma Santana, é simples: “Sem arma. Não há motivo algum para o uso.” Para o presidente da comissão de Igualdade Racial da entidade, o caso revela um padrão importante das instituições policiais frente à população negra. “É mais um exemplo de tantos que ainda acontecem.”

Questionada sobre o procedimento no caso, a Polícia Militar declarou ao TAB que a busca pessoal independe de mandado judicial “quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida”.

Fonte: TAB/UOL

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