Alta de 17% no botijão de gás faz famílias recorrerem a empréstimo e lenha
Pegar empréstimo com a família ou amigos, substituir o fogão por fogareiro elétrico, usar lenha ou álcool para cozinhar, deixar de fazer refeições em casa e passar a comer em restaurantes populares do Estado. Esses são alguns dos malabarismos que as famílias mais pobres do Brasil estão fazendo para lidar com a alta do botijão.
Nos últimos 12 meses, o preço médio do botijão de gás residencial subiu 17% – de R$ 57 para R$ 67 – segundo o levantamento de preços da Agência Nacional do Petróleo (ANP). É um aumento parecido com o do óleo diesel, de 20% no mesmo período, que motivou a greve dos caminhoneiros. Além disso, é uma alta muito acima da inflação, de 2,86% nos últimos 12 meses, na medição do IPCA.
No Jardim Pantanal, extremo da Zona Leste de São Paulo, Marli Souza Santos ficou sem botijão de gás no mês passado e não tinha dinheiro para comprar outro. Desempregada, com 43 anos, ela sustenta os três filhos com os R$ 190 que recebe do Bolsa Família.
Chegou a ficar alguns dias sem gás, até que a situação ficou insustentável – afinal, precisava voltar a cozinhar para alimentar a família. Então, pegou um empréstimo com um parente para comprar um novo botijão e vai pagar em duas vezes. Os distribuidores só vendem à vista, o que dificulta ainda mais a aquisição pelos mais pobres.
O aumento acima da inflação significa que as famílias “estão abrindo mão de comprar outras coisas para comprar o botijão de gás, que é essencial”, explica André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor, da FGV Ibre.
Isso ocorre especialmente entre os mais pobres, que não tem muito onde cortar. “Em geral, quanto menos se ganha, maior a fatia da renda que vai para comida – e também para o botijão”, afirma Braz. Por exemplo, para quem vive do benefício médio do Bolsa Família, um botijão de gás representa 37% do orçamento doméstico. Para quem ganha um salário mínimo, 7%. Já para quem recebe 10 salários mínimos, apenas 0,7%.
Já Luciana Ozório da Silva, que mora com o marido em Paraisópolis, favela paulistana, não teve ninguém para ajudá-la. Ela está desempregada e ele trabalha em um pequeno comércio do bairro. Recentemente, o dinheiro acabou e o botijão também. Resultado: ficaram sem gás. “Por um mês, tivemos que almoçar no Bom Prato todo dia”, conta ela. O Bom Prato é um restaurante popular, do governo estadual, que cobra R$ 1 pela refeição. “À noite, era suco e pão”.
No Centro-Oeste, que tem o gás mais caro do Brasil, 15% acima do preço médio nacional (R$ 77,4), muitas pessoas estão voltando a usar fogão a lenha. “O pobre mesmo está utilizando muito pouco gás. As pessoas estão improvisando um fogãozinho a lenha”, relata Salete da Silva, que coordena a distribuição de cesta-básica da Cáritas em Sinop (MT). A Cáritas é uma organização ligada à Igreja Católica, que atua na área da segurança alimentar.
Segundo o IBGE, o número de famílias que cozinham com lenha ou carvão aumentou em 2017, o que pode ser decorrência da alta do gás.
“Pessoas em situação de pobreza precisam se alimentar. Para isso, precisam de políticas públicas. Não só para o alimento, para o gás também”, afirma Avanildo Duque, gestor de Políticas e Programas da organização ActionAid no Brasil, que também trabalha com segurança alimentar.
13 anos sem reajuste
O aumento do gás de cozinha resultou de uma mudança repentina de preços da Petrobras – algo semelhante ao que ocorreu com o diesel e a gasolina, todos derivados do petróleo. Ao longo de 13 anos, entre 2002 e 2015, o preço do botijão vendido pela estatal ficou praticamente congelado no Brasil. Enquanto isso, os preços internacionais aumentaram continuamente.
Como grande parte do gás de cozinha consumido no Brasil é importada, a Petrobras assumiu a diferença entre o preço mais alto de importação e o preço mais baixo praticado no país. Era um tipo de subsídio ao gás de cozinha, que vigorou durante quase todo o governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Mas, em vez de ser bancado pelo governo, era assimilado pela própria Petrobras.
A partir de 2015, na tentativa de equiparar os preços da Petrobras com os praticados pelo mercado internacional, a estatal elevou o preço do gás em 15%. Foi o primeiro aumento em 13 anos. A seguir, a partir de junho de 2017, houve praticamente uma alta por mês.
Em resposta às críticas pelos aumentos mensais, a Petrobras passou a reajustar os preços a cada três meses. Esse ano, em vez de subir, o preço já caiu duas vezes. O próximo reajuste está programado para junho.
Hoje, o preço do gás de cozinha vendido pela Petrobras continua cerca de 11% mais barato que o internacional, segundo Larissa, que é mestre em economia e doutoranda em engenharia.
Para as famílias mais pobres, a mudança de política de preços da Petrobras foi um baque. Veio justo em um momento de crise, que reduziu a renda, encolheu o poder de compra e aumentou o desemprego.
“No caso do Brasil, existe uma grande necessidade de dar um incentivo financeiro para a aquisição de gás de cozinha para a população D e E. Mas que isso seja feito por parte do governo, não pela Petrobras. Talvez um bolsa botijão para a população menos favorecida”, acrescenta.
Duque, da Action Aid, concorda: “Uma opção seria uma política no âmbito do Bolsa Família, que contemplasse um valor para as pessoas terem acesso ao gás”.
Algo parecido já existiu no Brasil. No final do governo Fernando Henrique, antes da política de subsídio de preços pela Petrobras, o Brasil teve uma programa de distribuição de renda para facilitar o acesso ao gás pelas famílias mais carentes. Era o chamado Vale Gás. No governo Lula, foi incorporado ao Bolsa Família.
Recentemente, quando o gás da família acabou, não deu para comprar outro de um distribuidor oficial. “O dinheiro que eu tinha não dava para inteirar o gás de R$ 70. Compramos um de R$ 56. É um gás pior. Mas a gente faz o que pode”. A ANP recomenda que os consumidores só comprem botijão de revendedores autorizados, até por questões de segurança.
Além disso, a família está controlando o uso do fogão para fazer o gás durar mais. Para isso, usam um fogareiro elétrico, de uma boca só, para fazer café, arroz e feijão. É preciso paciência: são 30 minutos até a água ferver. E a conta de luz? “Aqui, a gente não paga luz, então temos essa possibilidade”.
Gás para os mais pobres?
Este ano, o governo de Michel Temer chegou a anunciar que tomaria alguma medida para reduzir o impacto do aumento do gás entre os mais pobres.
Em fevereiro, o então ministro da Fazenda Henrique Meirelles confirmou que a pasta estudava uma medida para reduzir o preço do gás de cozinha, com foco nas famílias de baixa renda. Além disso, o então ministro de Desenvolvimento Social, Osmar Terra, afirmou que o Bolsa Família poderia ser reajustado para incorporar parte do aumento do preço do gás de cozinha.
O presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM) também teria prometido a líderes partidários que votaria medida para baixar o preço do gás de cozinha. Por meio de sua assessoria, o deputado federal declarou estar “tentando construir uma solução dentro do teto de gastos”.
“Enquanto o governo está pensando como pode subsidiar o consumidor da classe D e E, a Petrobras acaba internalizando esse subsídio (já que o preço continua abaixo do mercado internacional) e acumulando prejuízos”, afirma a pesquisadora Larissa Resende.
Segundo ela, uma das formas de baratear o botijão de gás no longo prazo seria aumentar os investimentos no segmento refino de GLP (o gás de cozinha), para que o Brasil desenvolvesse um mercado interno mais competitivo e menos dependente de importações – e, dessa forma, do preço do mercado externo e da cotação do dólar.
Para que esses investimentos ocorram, afirma Larissa, é importante que a Petrobrás tenha caixa para investir e também que não haja intervenção governamental nos preços da estatal, para estimular a entrada de capital externo.
Já Avanildo Duque, da ActionAid, sugere que o país passe a considerar outras alternativas de combustíveis para cozinhar. “É muito importante que a gente tenha mais autonomia e mais diversidade no uso de energia (para cozinhar). Não podemos ficar dependendo dessa matriz energética. Em momentos de crise, como o que estamos vivenciando, quem sofre mais são as pessoas mais vulneráveis”.
Entre as alternativas citadas por Duque estão o barateamento de fogões baseados em energia solar, a uso de biodigestores nas cidades, que podem gerar gás a partir do processamento de lixo e até do esgoto, até fogões agroecológicos, à base de lenha, mas em quantidades racionalizadas.
Em abril deste ano, o valor cobrado pela Petrobras correspondia a apenas um terço do preço do botijão (33%). Outros 24% eram referentes à distribuição do produto – das refinarias da Petrobras até os Estados. Mais 25% foi a margem de revenda. Além disso, 17,5% eram impostos – principalmente estaduais.
No começo do ano, a situação era bastante diferente: o peso da distribuição era bem mais baixo, de 16%. Uma das explicações para o encarecimento do transporte é o aumento do diesel – o gás de cozinha é transportado por caminhões. Agora, resta saber se o retorno do subsídio ao diesel, negociado com os caminhoneiros, vai refletir na redução do preço do gás de cozinha.
Por enquanto, as consequências da greve dos caminhoneiros foram negativas para o preço do botijão. Os 10 dias de mobilização nacional desabasteceram as distribuidoras e fizeram o valor subir ainda mais. Em São Paulo, o preço médio do botijão de gás registrado pelas empresas cadastradas no aplicativo Chama subiu de R$ 65 para R$ 75 – um aumento de 15%. Depois da greve, não retornou para os valores anteriores, ficando em R$ 70.
Mais grave ainda foi o aumento registrado no Centro-Oeste. Durante a greve, houve quem vendesse o botijão por impressionantes R$ 150.
Com o produto em falta e a demanda alta, a lei da oferta e procura fez o preço disparar. “O nosso produto virou ouro, teve até roubo de dois caminhões de botijão de gás”, relata Tavares. “Aqui, todo o gás vem por rodovia. Isso aumenta muito o preço”, explica o presidente do sindicato.
Fonte: BBC Brasil