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Após entrar na UnB aos 58 anos, Graça levou filha e neto à universidade

Em 2004, a auxiliar de enfermagem Maria das Graças Sousa Santos repetia consigo sempre que caminhava pelo campus da Universidade de Brasília nos intervalos do trabalho: “Ainda vou estudar aqui”. Dez anos depois e aos 58 anos, ela conseguiu: foi a primeira da família no ensino superior. Não contente, levou a filha e o neto juntos.

No dia que passou no vestibular para serviço social, Graça profetizou: “Raphinha, estou te esperando lá no ano que vem”. Quase. No ano seguinte, foi a vez da filha Ítala Jerônimo, que passou no IFB (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília). Raphael Leopolldo Sousa Menezes, o Raphinha, só virou colega de universidade da avó dois anos depois dela, ao ser aprovado em ciências da computação.

Especialistas e estudos consultados pela reportagem mostram que a história dela representa um Brasil marcado pela evasão escolar e dificuldade para estudar. Indicam também que os três são símbolo de uma democratização recente do ensino superior.

A começar pela matriarca, que trabalha desde os 7 anos, só concluiu o ensino médio aos 48 anos e acessou o ensino superior por meio do sistema de cotas raciais da UnB, toda a família Souza chegou aos bancos universitários por meio da Lei de Cotas, que desde 2012 reserva vagas em universidades e institutos federais a alunos de escola pública e também beneficia estudantes negros (pretos e pardos), indígenas e com deficiência.

A mais velha da turma

No início da graduação, Graça, como é conhecida pelos chegados, penou. “É um ambiente solto, né? Como era tudo novidade, eu me dispersava às vezes”, conta. No primeiro período, reprovou em duas das seis disciplinas. “Depois, você vai conversando com os colegas, pegando o jeito, e eu tinha professores muito acessíveis para conversar.”

A diferença de idade era marcante, mas ela gostava muito do contato com os mais jovens. “Os meninos eram muito educados, me faziam sentir integrada na sala de aula”, conta. Outra paixão era ir à biblioteca. Quando arranjava tempo para estudar “na calmaria”, chegava bem cedo. “Quando eu olhava pelo vidro, já era noite. Eu me perdia no tempo estudando.”

Hoje, aos 66 anos, Graça finaliza a monografia. “Tem sido um desafio, porque, para escrever, a gente tem que ler, reler… Dá até uma confusão de ideias”, conta, em meio a risadas tímidas. Só de pensar na apresentação do trabalho, ela já fica preocupada. “Eu gaguejo muito, principalmente quando estou nervosa. Quero ver como vai ser para defender [o trabalho] com outras pessoas me perguntando as coisas.”

Evangélica desde a infância, Graça escolheu como tema do projeto os preconceitos sofridos por pessoas LGBTQIAP+, porque se indignava com as dificuldades de integrantes do grupo para conquistar espaços na sociedade, inclusive na igreja. “Isso me intrigou”, afirma. Ela precisa apresentar a monografia até o final deste semestre para não ser jubilada.

O duplo impacto da pandemia

Depois de se adaptar à vida de universitária, Graça se deparou com o baque da pandemia, que acabou com sua única fonte de renda e prejudicou seu desempenho acadêmico. “Até minha filha repara: ‘não sei o que houve com a senhora. Deve ter sido um bloqueio,’. Antes, ela reparava que eu gostava muito de ler. Agora, reclama de que não estou lendo nada”, conta.

Até o isolamento social devido à pandemia do novo coronavírus, a rotina de Graça era sair cedo de casa, montar sua banquinha no campus da UnB e vender brigadeiro, torta e bolo. Só parava no meio da tarde, quando ia estudar. Com o trabalho, pagava as contas da casa que divide com Ítala e Raphael em São Sebastião, na periferia de Brasília.

A partir de 2020, as aulas passaram a ser remotas, e Graça parou de vender comida aos estudantes. Passou a contar só com o auxílio de R$ 465 pago pela universidade a alunos em vulnerabilidade financeira. Sem computador, só sanou o tempo perdido quando os colegas de classe fizeram uma vaquinha para ajudá-la a comprar um notebook.

Ítala foi a única que manteve o trabalho durante a pandemia. O salário como educadora popular, porém, era insuficiente e a família precisou receber cestas básicas da igreja. As coisas só melhoraram quando ela conseguiu emprego de agente de saúde, que oferece um salário melhor.

Estudos em segundo plano

Desde os 7 anos Graça trabalha para ajudar a sustentar a casa onde vivia com os dois irmãos e a mãe, dona Sidelsina Carolina Sousa, em Salvador (BA). Nessa época, era lavadeira, areava panelas e até cuidava de outras crianças. Estudar só quando desse tempo.

Aos 18 anos, quando foi para São Paulo trabalhar como copeira na casa de uma família no bairro Higienópolis, só levou na bagagem a sétima série do ensino fundamental. Cerca de um ano depois, uma amiga a indicou para trabalhar na casa de outra família, em Pinheiros.

Os novos patrões a matricularam em uma escola pública. “O pessoal me achava muito inteligente. Eles queriam que eu estudasse para ser nutricionista. Acho que era porque eu fazia as crianças comerem direitinho.” Exausta pela lida que começava de manhã e não tinha hora para terminar, Graça abandonou a escola em seis meses. “Era bom porque tinha gente para conversar, mas eu me sentia muito cansada. Não dava para prestar atenção.”

Um retrato do Brasil pré-cotas

Até a década de 1960, a maior parte das pesquisas sobre evasão e abandono escolar responsabilizava o aluno pela interrupção nos estudos. De lá para cá, o fator determinante para analisar o desempenho escolar passou a ser a origem socioeconômica do estudante. É o que mostra estudo publicado em 2004 pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com dados da educação brasileira desde o primeiro Censo Educacional de 1932.

Mesmo no início dos anos 2000, mais de 60% dos alunos do ensino fundamental acumulavam dois ou mais anos de defasagem em relação à série que estavam cursando. Conhecido como distorção idade-série, o fenômeno afeta as vidas dos alunos e de suas famílias de diferentes formas, seja impossibilitando melhores condições socioculturais, diminuindo a autoestima ou resultando em salários baixos.

O motivo para Graça não concluir o ensino fundamental no tempo adequado permanece o mesmo quase 40 anos depois. De acordo com um estudo do IBGE, a necessidade de trabalhar foi a principal razão para jovens abandonarem os estudos em 2019. Dos mais de 10 milhões de pessoas que não concluíram o ensino médio naquele ano, 71,7% eram negras. “Por ser negra, pobre, mulher, ter filhos sem ter recurso? Todas essas coisas dificultaram”, afirma Graça.

A falta de informação como impedimento

Em 2018, o teólogo Frei David Santos identificou disparidades no acesso à informação sobre ensino superior público ao visitar seis escolas da capital paulista. Ele é fundador da Educafro, ONG que atua na inclusão de pessoas negras e pobres na universidade.

Nas paredes dos colégios particulares visitados, todos do centro da cidade, ele observou cartazes sobre o período de inscrição de vestibulares e motivação dentro das salas de aula. Já as visitas a três escolas públicas da zona leste da capital decepcionaram. Além de não ter visto informação alguma sobre universidades, ele constatou que os alunos desconheciam dados básicos como período para isenção da taxa de inscrição nos vestibulares e sobre cotas para pessoas pobres e negras. “A escola pública está investindo no fracasso do aluno quando não faz sua missão básica, que é orientá-lo”, afirma.

Nas escolas públicas do Distrito Federal, para romper com a falta de informações, as escolas eram visitadas por acadêmicos que falavam sobre a política de ação afirmativa na UnB, a primeira instituição federal a adotar cotas raciais, em 2004.

“Hoje, muito mais gente passou a assimilar a presença e a importância das cotas. Até pessoas adultas, que não imaginavam essa possibilidade, agora se candidatam, pois sabem que tem. É um resultado de um processo lento de expansão da consciência sobre as cotas”, explica o antropólogo José Jorge de Carvalho.

Um entrave chamado subemprego

Aos 23 anos, Graça descobriu que estava grávida. A filha, Ítala, viveu os primeiros anos de vida na casa onde Graça trabalhava, mas foi preciso deixá-la aos cuidados da avó, na Bahia, quando a menina completou dois anos. “Era a realidade da maioria das mulheres brasileiras. Eu mandava dinheiro e, nas férias, voltava para ela.”

Com 27 anos, Graça largou o serviço e voltou a morar com a mãe. Dali em diante, foi cozinheira, passadeira, lavadeira, empregada doméstica outras vezes. Viveu na Bahia, no Rio Grande do Sul, em Brasília. Foi até para a Suíça, onde trabalhou por três anos como babá da neta de uma antiga patroa. Mudava sempre em busca de emprego que pagasse melhor e desse mais conforto para Ítala.

A volta aos estudos só ocorreu no início dos anos 90, aos 37 anos, quando entrou em um curso de auxiliar de enfermagem que não exigia diploma de ensino básico. A escolha, diz, foi quase automática, já que, como doméstica, sempre estava cuidando de alguém. A rotina continuava pesada: trabalho durante o dia em uma cozinha industrial, estudo à noite. “Tinha em mente que eu precisava dar uma levantada na vida.” Formada, mudouse com dona Sidelsina e Ítala para Ceilândia, na periferia de Brasília.

“Saía de um plantão e já tinha outro. A vida começou a melhorar a partir daí. Quando você vai conseguindo as coisas que você quer, é como se você colocasse uma maquiagem nova, um batom? sua autoestima vai melhorando.”

Após concluir o ensino médio em 2004 no EJA (Educação de Jovens e Adultos), Graça prestou vestibular para enfermagem na UnB. Saindo de um plantão para entrar em outro e auxiliando a filha que acabara de virar mãe, Graça não passou. Por cinco anos, guardou a vontade de ir à faculdade.

A universidade muda de cara

Quando se graduou em Ciências Sociais na UnB, em 1995, Joaze Bernardino Costa era um dos quatro alunos negros da turma. Ao voltar em 2009 como professor, ele notou diferenças. “Esses alunos na universidade eram como algo fora da paisagem normal. Daquele ano até hoje, há um processo crescente da universidade em se tornar mais negra”, conta.

“Quando alguém de uma região periférica chega à UnB, ele serve de exemplo aos vizinhos, ao colégio onde estudou. Do ponto de vista simbólico, essa é uma mensagem que diz que o Brasil é para essas pessoas também”, Joaze Bernardino Costa, professor do Departamento de Sociologia da UnB.

Essa mudança no perfil dos estudantes também ocorreu em outras instituições. Cerca de 52% dos estudantes das universidades brasileiras são pretos e pardos.

“A gente ainda está vivendo uma fase em que as primeiras turmas de cotistas entram no mercado de trabalho. É possível ver pessoas com destaque oriundas das cotas, o que muda toda a nossa visão de país e cria modelos a serem imitados”, Luiz Augusto Campos, coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Nova tentativa

Em 2009, Maria das Graças fez o Enem e conseguiu uma bolsa integral pelo Prouni (Programa Universidade Para Todos) em uma universidade privada, onde estudou Gestão Pública e, apesar de concluir o curso, não pegou o diploma.

Quatro anos depois, Graça se inscreveu no vestibular da UnB novamente no curso de enfermagem. Nem chegou a ir à prova. No dia do exame, teve um plantão no trabalho. Fez a inscrição para o semestre seguinte. Estudou para valer com livros deixados pelos estudantes em pontos de ônibus da cidade. Passou na primeira chamada.

“A pessoa que não tem estudo não tem escolha, aceita qualquer trabalho que oferecem. Fico feliz em ter ajudado Ítala e Raphinha que, com a idade que eu tinha quando engravidei, já está terminado o curso superior”, Maria das Graças, auxiliar de enfermagem.

Ao concluir o curso, Graça pretende prestar concurso público e trabalhar como assistente social na área da saúde ou no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). A expectativa dela é que a idade não seja problema, como parece ser na hora de arranjar emprego como auxiliar de enfermagem.

Fonte: UOL Educação

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