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‘Filhos primeiro, depois a gente’: a rotina das mães em famílias sem comida

Macarrão com carne moída, uva e maçã. Os pratos preferidos de Kimberly, 7 anos, já indicam que ela sabe os ingredientes necessários para uma refeição rica em nutrientes. O que é prescrito em livros e por médicos no mundo todo, no entanto, nem sempre é possível de ser feito em sua casa.

Ela mora nas margens de um rio na zona leste de São Paulo com seus pais e dois irmãos mais novos. Em um contexto difícil e de quase sobrevivência, “a gente vai se virando” é a frase mais repetida por Kathleen Cardoso Moreira, de 24 anos, mãe de Kimberly, quando o assunto está relacionado às dificuldades enfrentadas por ela e sua família.

Dados obtidos com exclusividade pelo UOL mostram que o número de casos de desnutrição em menores de idade atendidos pela atenção básica saltou no país. Até setembro foram registrados 977 mil diagnósticos, de acordo com informações do Sisab (Sistema de Informação da Saúde da Atenção Básica), do Ministério da Saúde.

Em agosto, as unidades reportaram 136 mil casos de pacientes de até 17 anos com desnutrição. Para efeito de comparação, em 2015 esse número foi de 27 mil.

Segundo o Vigisan (Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil), a insegurança alimentar grave ou moderada é maior nos lares em que vivem crianças com menos de 10 anos.

Em 37,8% das casas em que moram crianças há fome ou dieta insuficiente —a média nacional, levando em conta todos os domicílios, é de 30,7%.

“A fome é um problema complexo, multideterminado, porque não tem uma causa única. Por que está existindo a fome? É um fio de dominó”, analisa a professora Maria Beatriz Linhares, do departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da USP (Universidade de São Paulo) e membro do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância.

“Esses dias faltou arroz. Abri o armário e fiquei desesperada, mas pedi ajuda na igreja e eles deram uma cesta básica. É sempre assim, a gente vai se virando”, Kathleen Cardoso, dona de casa e mãe de três.

‘Eles primeiro, depois a gente’. A família de Kathleen vive com até R$ 700 por mês — ou R$ 140 per capita—, conquistados pelo trabalho de seu marido Lucas nos bicos de ajudante de pedreiro.

A prioridade, segundo ela, é sempre das crianças. “Se não tem mistura, as crianças comem arroz e feijão. A gente fica com o que dá. Eles primeiro e depois a gente.”

Esse também é o pensamento da dona de casa Elisa Rodrigues dos Santos, 29. Moradora de Paraisópolis, zona sul de São Paulo, ela mora com o marido e sua filha de três anos.

Apesar de priorizar sempre a filha, Elisa amamenta e, por isso, conforme apontam as recomendações médicas, precisa ter uma boa alimentação, repleta de nutrientes.

“Não podemos olhar apenas o aspecto biológico no pré-natal e depois. É preciso ter um desenho interseccional e juntar vários recursos para auxiliar aquela mãe”, explica a enfermeira Marcia Machado, que também é sanitarista e professora do departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFC (Universidade Federal do Ceará).

Driblando a fome. Com a alta no preço dos itens no mercado, Elisa conta também que passou a comer mais macarrão do que arroz.

Além da Ana Vitória, ela tem outros dois filhos: Eliel, de 11 anos, e Elise, de 10 anos. Eles moram com a avó -o que, segundo Elisa, também ajuda nas contas. A decisão aconteceu porque não caberia a família toda na casa de um cômodo, construída pela prefeitura.

“Não ter o que dar para o seu filho, ouvir “mãe, quero isso” e não ter dinheiro é difícil. Sonho em ter um bom serviço, uma boa casa, sair do aluguel, porque esse é um dinheiro que vai e não volta”, Elisa Rodrigues dos Santos, dona de casa e mãe de três.

Até julho, Kathleen usava o cartão de um vizinho para parcelar as contas do supermercado todo mês. Ele não empresta mais. “Agora a gente compra com o que tem de dinheiro e vai fazendo a comida render”, admite.

Chefe da família. Na zona leste, a vendedora Janaína Alves é responsável pelos dois irmãos mais novos e quatro crianças de 5 a 7 anos—duas são filhas e as outras são sobrinhas. Com emprego fixo, a insegurança alimentar grave não chega a atingir a família, mas há dificuldades.

“Compro tudo do mais barato, faço a compra do mês e peço para eles economizarem”, conta Janaína. Ela recebe R$ 1,4 mil por mês -o que dá R$ 200 per capita.

Apesar de não faltar comida, a dieta não é rica em nutrientes, nem tem diversidade -o que também é prejudicial para o desenvolvimento das crianças. Uma de suas filhas de consideração, por exemplo, tem 5 anos, mas não fala e tem estrutura de uma criança de 3 anos.

Janaína passou a ser a chefe da família no ano passado, quando sua mãe faleceu diagnosticada com câncer vaginal.

“Não conseguia mais trabalhar, mais levantar e eu ficava me perguntando “como vou fazer? Como vai ser?”, porque tenho quatro crianças na minha responsabilidade e antes eu tinha minha mãe”, relembra a vendedora.

Igreja e lideranças comunitárias. Com histórias diferentes, alguns problemas parecidos, as três famílias têm outro ponto em comum: contam com a ajuda de igrejas e lideranças comunitárias para driblar um cenário tão complexo como o da fome e da desigualdade.

Em Paraisópolis, Elisa tem ajuda do G10 Favelas com doação de cesta básica e marmitex na hora do almoço. Kathleen e Janaína têm apoio da líder comunitária Elaine Nascimento.

“A gente recebe doação e ajuda da forma que consegue, dividindo para cada um ficar com um pouco. Recentemente, tivemos a doação de mistura feita por uma empresária e isso é raro, porque geralmente são cestas básicas, não vem legumes, verduras e proteínas, por exemplo”, conta Elaine.

Como trabalha no horário comercial, Janaína conta com a ajuda de um projeto social de uma igreja.

Impacto. Sem alimento ou com uma dieta enfraquecida, crianças na fase da primeira infância —de zero a seis anos— podem ter diferentes impactos no desenvolvimento.

“Quando falamos em desenvolvimento não é só crescimento físico da criança. A fome impacta na estrutura e funcionamento cerebral”, aponta a professora Maria Beatriz. Segundo ela, o problema da fome está aliado à desigualdade social, violência e negligência.

A professora Marcia também aponta que a fome antecipa doenças crônicas nas crianças e, mesmo sem entender, elas podem sofrer estresse tóxico —que é gerado num ambiente cheio de adversidades.

“O estresse tóxico afeta o desenvolvimento cerebral, a questão do aprendizado da criança, o processo de informações e os resultados que as crianças podem obter, por exemplo, no período escolar. Isso produz traumas também”, Marcia Machado, enfermeira e professora da Faculdade de Medicina da UFC.

A professora explica que uma criança, ainda na primeira infância, deve receber estímulos positivos para ter um bom desenvolvimento. “É como se você tivesse um computador de uma superpotência, mas ele está parado”, exemplifica.

Ser de uma família que vive em condição de pobreza colabora negativamente para mudança de comportamento, aumento de doenças e situações adversas que são absorvidas pelas crianças.

Soluções. Maria Beatriz, do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância, usa três caminhos essenciais para o combate da fome:

  • 1. Reconhecer o problema no âmbito do governo;
  • 2. Avaliar, diagnosticar e monitorar. “Precisamos saber quem são as pessoas que passam fome no Brasil, onde elas estão”, diz.
  • 3. Colocar em ação o que está na lei: criança é prioridade

“Precisamos investir nos programas de transferência de renda, mas não só isso. Precisamos das áreas da educação, saúde, proteção social trabalhando juntas”, afirma a educadora.

PEC da Transição. O governo de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem negociado com o Congresso uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para garantir a manutenção do pagamento de R$ 600 aos beneficiários do Auxílio Brasil -que será rebatizado de Bolsa Família.

A proposta furaria o teto do orçamento e, por isso, tem levantado críticas de economistas e do mercado.

Para Naercio Menezes, professor do Insper e diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, é preciso “combinar responsabilidade social e fiscal”.

“Os programas de transferência de renda começaram nos anos 2000 com o Bolsa Família e tiveram um papel muito importante para aliviar a pobreza. Eles não conseguem eliminar, no entanto, totalmente a pobreza”, Naercio Menezes, economista e diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância.

O economista aponta ainda que é preciso “quebrar com o círculo vicioso” da pobreza e desigualdade que dura por gerações. Para isso, ele sugere que o governo precisa focar em cuidados ainda nos primeiros anos de vida de uma criança, da atenção básica à educação.

* Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade e Covid-19 no Brasil e América Latina”, do Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University

Fonte: UOL

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