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‘Housing first’: vila oferece primeira moradia a quem quer sair da rua

“Tia, quantas vezes eu posso usar o banheiro?” A pergunta pode soar trivial para uma criança em sala de aula, mas faz doer o coração quando o cenário é a casa onde ela mora.

Na Vila Reencontro Cruzeiro do Sul, zona norte paulistana, moram meninos e meninas que nunca tiveram uma geladeira e nem sequer sabem como funciona. Boa parte deles está habituada, junto com seus pais, a banheiros públicos coletivos com limite de frequência: por isso, hesitam em transitar no banheiro dentro da própria casa.

A vila, parte de um projeto da SMADS (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social), oferece um teto provisório a pessoas em situação de rua. Composta por 40 casinhas de 18 metros quadrados cada, ela se propõe a servir de base para quem precisa se reerguer na sociedade.

História de amor

Rafael dos Santos, 34, barman e ajudante geral, ocupa a casinha de número 2. “Moro nesta porque fui o segundo selecionado. Graças ao bom comportamento que tive ao conseguir trabalho quando morei em um hotel social no centro”, conta ele à reportagem do TAB. Egresso do sistema prisional, Santos fala sobre o motivo do encarceramento.

Nascido em São Paulo, mas com família em Bento Gonçalves (RS), cometeu um crime no Sul que lhe custou seis anos de reclusão. Ele conta que um dia, ao chegar em casa, encontrou a mãe aos prantos porque sua irmã de oito anos fora estuprada. Elas identificaram o agressor e a mãe pediu para Santos ir à delegacia pedir que o criminoso fosse preso. O barman, no entanto, reuniu dois amigos, foi à casa do agressor e o matou.

Em São Paulo, após cumprir pena e retirar a tornozeleira eletrônica, Santos não conseguiu emprego. Teve que morar na rua, mas foi lá que conheceu a sua companheira, Karen Lanuza de Souza, 28. Usuária de crack, enfrentou o desafio de ajudá-la a sair do vício.

Levou a namorada para outra região de São Paulo para afastá-la dos usuários conhecidos. Ali, começaria uma transformação na vida do casal que o levaria a morar na Vila Reencontro — que não aceita usuários de drogas entre os seus beneficiários.

Redução de danos

Uma pesquisa da Uniad (Unidade de Pesquisas de Álcool e Drogas) e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) constatou que cerca de 50% das mulheres usuárias de crack já tentaram o suicídio e 66% cogitaram se matar. Santos fez de tudo para que Karen não entrasse na estatística.

Quando surgiam crises, ele oferecia cannabis para aplacar a abstinência do crack. A estratégia funcionou. “Podem achar estranho, mas foi necessário trocar uma substância por outra, fiz redução de danos”, explica ele. “Ela ficava mal, eu jogava a ganja [gíria para maconha]. “Na hora, começávamos a rir. Nos divertíamos vendo filmes no celular. Eu dava também chocolates para diminuir a fissura. E a vontade de fumar pedra ia embora”, conta.

Ele afirma que a equipe do Caps (Centro de Atenção Psicossocial), onde a companheira era paciente, sabia da metodologia de redução de danos. De fato, a utilização da maconha no tratamento de dependentes de crack tem evidências positivas. Uma pesquisa feita pela University of British Columbia com 122 pessoas mostrou que o consumo de cannabis pode fazer usuários de crack e cocaína reduzirem a frequência de utilização dessas drogas.

Gravidez e superação

Quando Karen engravidou, o casal decidiu que não tinha mais como continuar vivendo na rua. Um ex-marido de Karen havia ateado fogo nela, que teve 50% do corpo queimado, e um médico os alertou para os enormes riscos da gravidez, que esticaria os enxertos de pele que ela fez. Mas deu tudo certo. Depois do primeiro filho, ainda teriam outro menino.

Primeiro, conseguiram uma vaga de moradia no Rivoli, um hotel social no centro de São Paulo. Ele finalmente conseguiu emprego: na Família Verde, uma loja com headshop — venda de produtos relacionados a cannabis, como sedas, piteiras, bongs — e bar. Foi o único lugar que aceitou numa boa o histórico criminal de Santos e lhe deu uma segunda chance, justamente por sua experiência com a política de redução de danos com cannabis.

“Jamais roubei ou trafiquei. Não sou ladrão, prefiro trabalhar, ter dinheiro honesto. Já vendi bala na rua, sempre fui um cara de negócios”, afirma. No estabelecimento, ele aprendeu a fazer drinks e deu até uma repaginada no cardápio com suas criações.

Por causa dessa história surpreendente de recuperação de toda a família, conseguiram prioridade na seleção da Vila Reencontro. Hoje, ele conquistou outro emprego pelo POT (Programa Operação Trabalho), também da prefeitura.

Reencontrando a harmonia

Peterson Santos Faria, 32, é outro morador da Vila Reencontro. Músico, começou a tocar trombone aos 12 anos de idade na banda de fanfarra da escola — inspirado por um avô que tocava em um programa de rádio em Mogi das Cruzes (SP).

Faria conta que chegou a se apresentar ao lado do cantor e compositor Ivan Lins e do trompetista canadense Fred Mills (1935-2009), até que a dependência química desafinou sua vida. “Eu me afastei da música, comecei a usar drogas, morei na rua”, conta.

Enfim sóbrio, disputou uma vaga na Vila Reencontro, onde acredita que finalmente começou a entrar nos eixos. “Eu me tratei e hoje dou até palestras para contar a minha história. Acredito que dessa forma posso inspirar outras pessoas a mudarem de vida”, diz.

“Estou muito bem aqui, minha companheira está em uma casa confortável. Às vezes, improviso um som com os vizinhos que tocam, alivia a mente. A música salva vidas.”

Demanda reprimida

Inspirada no modelo internacional de “housing first” (“morar primeiro”, em tradução livre), a Vila Reencontro da Vila Cruzeiro foi construída em um terreno de 31 mil metros quadrados que sediava antes o CMTC (Clube da Companhia Municipal de Transporte Coletivo). Estão disponíveis, por enquanto, 40 unidades de moradia, mas a expectativa é abrigar 270.

As unidades, mobiliadas, são feitas de um material especial para manter a temperatura agradável. As casinhas, azuis, são decoradas com grafites nas laterais. O programa propõe que os moradores fiquem lá por até dois anos, durante os quais recebem cursos profissionalizantes e indicações para vagas de trabalho. O refeitório e espaço para lavar roupas são compartilhados.

A iniciativa, no entanto, ainda está distante de atender as necessidades das pessoas em situação de rua em São Paulo. Além da Cruzeiro do Sul, há apenas a Vila Reencontro do Largo da Memória, no Anhangabaú, com outras 41 unidades.

Fonte: TAB/UOL

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