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STF entra em colisão com a Justiça do Trabalho em processos envolvendo PJs

Uma série de decisões recentes, tomadas individualmente por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), vem esvaziando a competência da Justiça do Trabalho para apontar fraudes em contratos envolvendo as chamadas “PJs” — também conhecidas como “empresas de uma só pessoa”.

Isso pode não só gerar uma enxurrada de recursos à mais alta corte do país, que não tem estrutura nem vocação para analisar esses pedidos, como também passar à sociedade uma mensagem de “vale-tudo” na área trabalhista, alertam fontes ouvidas pela coluna.

Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes — famoso por suas críticas à Justiça do Trabalho — subiu o tom e fez a crise escalar ao mencionar que, do total de reclamações protocoladas no Supremo ao longo deste ano, 54% correspondem justamente a processos de natureza trabalhista.

Mendes usou ainda a expressão “visão distorcida” para vocalizar o argumento encampado pela maioria de seus colegas ministros: a Justiça do Trabalho não estaria respeitando decisões tomadas pelo Congresso Nacional e pelo STF, no sentido de reconhecer outras formas de trabalho para além do vínculo empregatício com carteira assinada.

Terceirização irrestrita liberou a contratação de PJs?
No caso das PJs, os contratos estariam respaldados pela reforma trabalhista aprovada no parlamento em 2017 e por decisões posteriores tomadas pelo STF que autorizaram a terceirização de todo tipo de atividade.

A presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), Luciana Conforti, afirma que “não se discute a possibilidade de a terceirização existir”, mas que tem havido um “alargamento na jurisprudência do STF”.

Isso quer dizer que ministros do Supremo vêm validando qualquer contrato sob o argumento da terceirização, ainda que haja requisitos legais claros para definir se essa prática é ou não lícita.

Como exemplo, Luciana Conforti cita uma decisão da Justiça do Trabalho, cassada pelo STF, que apontava vínculo empregatício entre um hospital e uma médica, obrigada a abrir uma PJ para receber sua remuneração.

“Não era um hospital contratando uma empresa ou uma cooperativa de médicos, responsável por fornecer os serviços de um determinado número de cardiologistas ou de psiquiatras”, ilustra a presidente da Anamatra.

Nesse caso, segundo as provas colhidas, não houve uma terceirização, mas sim uma fraude, explica Luciana. “Além do pagamento, havia subordinação, habitualidade e pessoalidade (só a profissional poderia desempenhar a função para a qual havia sido admitida)”, acrescenta, citando os quatro elementos determinantes de uma relação de emprego típica.

Justiça do Trabalho x Justiça Comum
As recentes decisões do STF podem esvaziar as funções da Justiça do Trabalho definidas na reforma do judiciário realizada em 2004 por meio da Emenda Constitucional (EC) 45.

Segundo se lê no próprio site do STF, uma “inovação relevante trazida pela EC 45 diz respeito à Justiça do Trabalho, que teve sua competência ampliada para abranger todas as relações de trabalho, e não mais apenas relativas ao vínculo de emprego [com carteira assinada]”.

Porém, o que as recentes decisões do Supremo fazem é que a Justiça Comum assuma novamente a análise de casos envolvendo as PJs. Isso porque os ministros do STF têm considerado que os contratos não têm natureza trabalhista, mas sim civil.

Assim, um advogado contratado como PJ, que não tem seus direitos básicos remunerados por um escritório, é tratado da mesma maneira que o fornecedor de um produto que não é pago por um cliente.

“Do ponto de vista da organização judiciária, isso desorganiza o sistema”, avalia Silvana Abramo Ariana, juíza do trabalho aposentada e coordenadora de um estudo da Universidade de São Paulo (USP) sobre o assunto. “Isso vai deslocar para um juiz comum uma análise que ele não é especializado para fazer”, acrescenta.

Empregadores pulando etapas
Segundo Luciana Conforti, “já existem casos de sentenças de primeiro grau em que o empregador recorreu diretamente ao STF”.

Ou seja, em vez de apelar para a segunda e para a terceira instância trabalhista, há empregadores pulando etapas e acionando diretamente o Supremo, alegando que as condenações atentam contra princípios constitucionais — o que, em tese, só o STF tem competência para julgar.

O procurador-geral do trabalho (PGT), José de Lima Ramos Pereira, também avalia que empregadores têm abusado da estratégia de utilizar reclamações constitucionais e que isso pode interferir na competência da Justiça do Trabalho.

Além disso, ele enxerga com preocupação o excesso de decisões monocráticas (individuais) de ministros do STF sobre o tema. “Se fosse levado para o colégio do Supremo, as decisões poderiam até ser diferentes, para haver debate”, comenta.

A coluna procurou a assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

“Se o STF virar instância revisora da Justiça do Trabalho, isso é um grande risco para ele próprio, porque são milhões de ações trabalhistas”, finaliza a presidente da Anamatra.

Fonte: Coluna Carlos Juliano no UOL