‘Um desastre’: grupo ajuda escolas a ‘resistir’ à reforma do ensino médio
Por Matheus Zanin
Essa é uma série de reportagens que a coluna divulga sobre a realidade do Novo Ensino Médio em quatro escolas paulistas. Dois colégios são privados e dois, públicos —caso da E.E. Vereador Antônio de Ré, perfilada neste texto. Veja aqui a primeira reportagem da série.
Resistir ao Novo Ensino Médio (NEM). Essa tem sido a opção para escolas públicas que precisaram implementar a nova legislação com base em diretrizes pouco específicas, sem metodologia ou estudo logístico sobre a infraestrutura das instituições e a matriz curricular mais adequada aos estudantes.
Na rede estadual de São Paulo, algumas escolas participam de uma pesquisa-ação para acompanhar a nova legislação e construir alternativas que minimizem os problemas. É o caso da E.E. Vereador Antônio de Ré, em Guarulhos (SP), carinhosamente chamada de “Macedão” pela comunidade em referência ao nome do bairro em que a escola fica.
Localizada no centro expandido da cidade, a escola atende alunos de bairros periféricos da região. Em 2021, a Reforma mudou a rotina dos quase 200 alunos matriculados no primeiro ano do Ensino Médio. Em 2023, todos os 600 estudantes da etapa final da Educação Básica já seguem o currículo dividido entre base comum (as disciplinas tradicionais) e itinerários formativos (com as matérias optativas, que são a maior fonte de polêmica do NEM).
“Um dia, uma estudante virou para mim e falou que não sabia o nome da matéria que estava tendo”, diz Isaac Oliveira Moutinho, diretor da escola, ao avaliar o NEM. “No geral, a implementação do Novo Ensino Médio foi um desastre.”
Os problemas começaram antes mesmo das primeiras aulas. Treinamento escasso para professores, materiais pedagógicos pouco detalhados, número de salas insuficiente e desmotivação dos alunos foram os principais desafios.
‘Nem sei em qual itinerário estou’
Gabriela e Isadora (nomes fictícios, como os demais da reportagem, a pedido dos alunos), 16 anos, precisaram escolher os itinerários formativos no ano passado. Elas deveriam preencher um formulário com três opções entre as seis disponíveis na escola. Gabriela conseguiu entrar na turma que era sua primeira opção, o itinerário de Ciências Humanas e Matemática, mas Isadora acabou entrando na sua segunda preferência, “Cultura em
movimento”, o aprofundamento de Ciências Humanas.
“Ano passado, tínhamos cinco aulas de Matemática e, neste ano, somente três. Chegou uma hora que eu virei para o meu professor e falei: ‘Nossa, é a primeira vez que eu vejo o senhor!’, porque eu falto bastante nas aulas de itinerários”, diz Isadora.
A desmotivação atinge outros alunos. “Não sei em qual itinerário eu estou, são tantos nomes que eu fico perdido. Nada disso vai cair no Enem, então, não entendo a necessidade de estudar”, completa Júlio, 17 anos, outro aluno do Macedão.
Se os estudantes se decepcionaram com as matérias de aprofundamento, do lado dos professores a desconfiança é semelhante.
Um dia, Isaac acompanhava um docente dando aula com o material da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP). Em 15 minutos, a aula já havia sido finalizada.
“Mas já terminou?”, perguntou o diretor.
“Aqui está dizendo apenas para plantarmos a semente”, respondeu o professor. O tema da aula era desenvolvimento das plantas. Processos ientíficos sobre formação da raiz, caule, nível de água, sua relação com a terra e o processo de fotossíntese ficaram de fora da apostila de apoio.
“Nós da gestão da escola começamos a nos perguntar: é isso que queremos para nossos alunos?”, afirma Isaac.
Para tentar melhorar a proposta da Reforma, o Grupo de Escola Pública e Democracia (Gepud) entrou em cena.
O desejo e o desafio de fazer diferente
Vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Gepud foi criado em 2018 e reúne educadores, pesquisadores e universitários que trabalham para auxiliar na adoção de políticas de gestão democrática em escolas públicas.
Atualmente, o grupo coordena uma pesquisa-ação chamada “Mudanças Curriculares e Melhoria do Ensino Público”, financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Seu objetivo é acompanhar e propor uma implementação crítica do NEM nas escolas parceiras da entidade, como o Antônio de Ré.
“As escolas não podem deixar de implementar uma política pública educacional, mas quando se avalia que essa política educacional não é benéfica na sua essência para os estudantes, a escola também tem autonomia para fazer os ajustes necessários”, Márcia Jacomini, professora da Unifesp e coordenadora do Gepud.
Foram várias mudanças:
A equipe do Gepud articulou os conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Material de Apoio ao Planejamento e Práticas de Aprofundamento (MAPPA, da rede estadual), formalizando uma proposta de currículo mais rigorosa e que dialogasse com a realidade dos alunos.
Para cada um dos itinerários formativos, foram criados planos de ensino com outras opções de conteúdos para os docentes. O grupo também montou planos de aula para as disciplinas de Projeto de Vida, Tecnologia e Eletivas, procurando adaptá-las aos recursos tecnológicos existentes de fato na escola.
Materiais didáticos próprios passaram a ter sugestões de atividades mais humanizadas, menos “empreendedoras” e aderentes à realidade dos professores e alunos, que foram consultados sobre quais tipos de conteúdo gostariam de lecionar e de aprender.
Em 2020, foi a vez dos pesquisadores organizarem cursos virtuais para professores sobre o oferecimento das eletivas, incluindo temas como quais assuntos abordar com os alunos e atividades a serem propostas nas aulas.
“O apoio de uma instituição de ensino superior representou ao Macedão a possibilidade de exercer sua autonomia, estabelecendo um currículo com criticidade e com conteúdos conectados com toda a formação pedagógica do estudante”, diz Jacomini.
O Gepud avalia que a adesão efetiva para o uso de planos de aula e do material didático específico variou de escola em escola. A professora de História Rosimeri de Carvalho participou das discussões sobre possíveis mudanças nos currículos de cada disciplina, dando apoio à área de Ciências Humanas. “Ainda tenho dúvidas sobre o nível de engajamento dos professores com a proposta do Gepud”, diz.
Para Márcia Jacomini, a perspectiva é mais otimista. “Acredito que em 2024 tenhamos uma situação em que escola e professores sabem o que tem que fazer”. A pesquisa segue em andamento e deve ser finalizada em 2025.
Em nota, a Seduc diz que os materiais da Secretaria e apoio aos professores são elaborados “levando em consideração a matriz curricular e a carga horária estabelecidas para cada itinerário formativo”. A Secretaria ainda defende que as orientações oferecem ao educador formas de moldar o planejamento de suas aulas, permitindo que “ele as siga, adapte, amplie ou, até mesmo, as use como fonte de inspiração”.
*Matheus Zanin é jornalista e defendeu Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo na Universidade de São
Paulo (USP) sobre a realidade do Novo Ensino Médio.
Fonte: Colaboração para a coluna de Rodrigo Ratier, em Ecoa/UOL